O, originário da região do Recôncavo Baiano, foi o primeiro gênero musical brasileiro a se tornar patrimônio oral e imaterial da humanidade pela Unesco, em 2005. Para entender como funcionou esse processo, de que maneira isso impactou a vida de sambadores e a importância dessa política, conversamos com Caio Csermak, antropólogo e etnomusicólogo que desenvolveu uma pesquisa sobre o tema na cidade de Cachoeira, na Bahia.
Caio Csermak possui graduação em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). É mestre em antropologia social também pela UnB e especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça pela mesma instituição. É doutorando em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP). Tem experiência nas áreas de ciência política, relações internacionais e antropologia, e atuou como pesquisador/profissional nos seguintes temas: gênero e orçamento público, sociedade civil, Sistema ONU, políticas culturais, cultura popular, patrimônio cultural imaterial, etnomusicologia, relações raciais e antropologia visual.
Como você contextualizaria o que é o samba de roda para quem nunca teve contato com esse gênero?
O samba de roda é uma expressão coreográfica musical, algo inseparável da dança, que é parte integrante da música, sendo também a música parte integrante da dança. Uma noção que vem da música afro, na qual tocar, dançar e cantar é um ato único.
O samba de roda originalmente fazia parte de um grande guarda-chuva chamado batuque. Isso vem do século XIX, quando tudo que era dança com tambores e realizado por negros era chamado de batuque, desde o que estava na raiz dos ilês do candomblé, passando pelo samba e pelo coco. Existia uma grande falta de interesse por quem realizava os registros históricos dessas danças e desses ritmos, em geral pessoas brancas, que não faziam essa diferenciação e acabavam classificando tudo como batuque, mas as diferenças entre os vários gêneros musicais existiam, sim.
No fim do século XIX, na Bahia, vai surgindo o termo sambanos registros e nos documentos históricos, em geral documentos de ocorrência policial. O samba vai substituindo o batuque como a referência e, com isso, o termo batuquevai desaparecendo e parando de ser utilizado. O samba vira o grande guarda-chuva e o samba de roda uma denominação de qualquer tipo de samba que se cante em roda.
Se você chegar na Bahia hoje a alguma comunidade ou grupo de sambadores, eles raramente vão falar que estão fazendo samba de roda; se falarem, será algo para simplificar para alguém que não é dali daquele contexto. O mais provável é que podem dizer que estão tirando uma chula, ou um samba de estivador, corrido, barravento, samba de baleeiro, e por aí vai, as variações são imensas. Então, o samba de roda, na verdade, é uma maneira mais genérica de chamar todos esses gêneros, que têm em comum alguns elementos: a dança em roda; certa instrumentação que pode variar de um gênero para outro, mas com o pandeiro sempre presente; a música acompanhada das palmas; a lógica de perguntas e respostas nos cantos; uma célula rítmica básica que pode variar, mas que se repete na maior parte do tempo, que seria uma base rítmica binária; há também uma proximidade do candomblé e da capoeira, em maior ou menor grau; e, por fim, o gesto da umbigada na hora de tirar para dançar.
Em 2005, o samba de rodavirou patrimônio oral e imaterial da humanidade pela Unesco. Como esse processo se deu no Recôncavo?
Durante a gestão Gil no Ministério da Cultura, a intenção era que o samba urbano carioca se tornasse patrimônio, e quem me confirmou isso foi Carlos Sandroni em um artigo. Sandroni foi coordenador do inventário e estava bem próximo a essa questão da patrimonialização. Era necessária, para a obtenção do título de patrimônio imaterial, uma série de pré-requisitos pedidos pela Unesco, como: ser uma manifestação artística/cultural que tivesse uma base comunitária, que fosse bem delimitada geograficamente e que estivesse em risco de extinção. O samba urbano carioca já estava bem difundido por todo o país e muito inserido na indústria cultural para que atendesse a esses pré-requisitos. Aí surge o samba de roda da região do Recôncavo como uma possibilidade mais viável e sendo pensado como uma matriz do samba urbano carioca e que, posteriormente, ganharia ares de uma expressão artística de caráter nacional.
Essa é uma ideia um pouco anacrônica, de uma linha evolutiva do samba, mas aí já é outra questão, e para não fugir muito da sua pergunta a gente pode olhar esse processo todo e perceber que a lei de patrimonialização estava nascendo no Brasil ainda – o decreto é de 2001, do fim do governo Fernando Henrique Cardoso, e começa a se materializar em 2003. Você tem dois processos de patrimonialização que aparecem antes do samba de roda – a arte gráfica Wajãpi e o ofício das gameleiras no Espírito Santo –, mas o samba de roda é a primeira experiência com um gênero musical e coreográfico que passa pela patrimonialização, então ele cumpre esse papel fundacional de uma política, é um teste mesmo. Chamaram para coordenar o projeto o Sandroni, que é um etnomusicólogo excelente, um grande estudioso do samba carioca, e tinha uma equipe de primeira linha trabalhando nesse processo: Katharina Döring, Francisca Marques, Ari Lima, uma equipe de muita qualidade que vai a campo, e vai inventar uma maneira de fazer essa política. Então tem essa importância fundacional que acabou criando uma maneira de patrimonializar um gênero musical; depois vieram o jongo, o bumba meu boi, o tambor de criola, mas ele foi esse marco fundacional e, como todo marco fundacional, existe o risco de trabalhar na tentativa e no erro.
Como você comentou, entre os pré-requisitos da Unesco havia o de que fosse uma manifestação que estivesse em risco de extinção. Como estava isso antes da política de patrimonialização? E esse cenário teve alguma mudança a partir da implementação dessa política?
O risco de ser extinto é relativo, porque quando vem a patrimonialização o samba de roda está bem presente no cotidiano e na vida das pessoas ali na região do Recôncavo. Algumas formas tradicionais do samba de roda estavam e estão perto de desaparecer, dependendo do prisma pelo qual você olha – você pode olhar pela retórica da perda ou pela retórica da transformação. E quando se vai a campo é possível observar esse conflito: alguns sambadores mais antigos lamentam o desaparecimento de algo que se perdeu, mas também é possível ouvir sambadores mais jovens muito empolgados com a introdução do baixo elétrico no samba de roda.
Mas, realmente, algumas técnicas e elementos muito importantes do samba de roda já estavam em processo de desaparecimento, como o uso da viola machete e da viola três quartos, mas mais a machete. A viola machete, que é pequena, veio trazida da Ilha da Madeira [Portugal] e adaptada no Brasil, e se viam poucas violas machetes espalhadas pelo Recôncavo, pouca gente sabendo tocar e mais ninguém sabendo fazer. Os artesãos e os sambadores foram falecendo, o que serviu de alerta para a política de patrimonialização, e de fato houve, a partir disso, uma reintrodução do uso e da luteria da viola machete – esse é um dos logros da política.
Em relação à localização geográfica, como foi, no processo de patrimonialização, a delimitação dessa região?
Essa é uma questão complicada, porque a própria delimitação do Recôncavo é um pouco confusa. Se você olha pelo prisma econômico, é uma; se você olha pelo prisma do território e da identidade, que é uma categoria do governo estadual, você tem outra delimitação geográfica; já pelo prisma político você tem uma terceira possibilidade; pelo prisma histórico da região produtora de cana é outra, então o Recôncavo tem tamanhos e dimensões diferentes. A política de patrimônio caminhou pela região canavieira, andou também por outras cidades, mas se concentrou sobretudo nessa região.
Na região canavieira vão predominar dois tipos de samba: o samba corrido e a chula. O primeiro está mais presente em Cachoeira e na margem sul do rio Paraguaçu, onde estão São Félix e Muritiba, enquanto a chula vem do Iguape, que é o distrito onde ficam as comunidades quilombolas de Cachoeira, e também nas cidades de Santo Amaro e São Francisco do Conde.
A pesquisa, ao se concentrar nessa região, acaba privilegiando determinado tipo de samba, mas é complicado, porque o samba de roda com outros nomes está espalhado desde Juazeiro, na divisa com Petrolina, até a região do cacau, passando pelo sertão. Você tem outros tipos de samba que também se dançam em roda, então para fazer um inventário de fôlego é preciso ter recursos, e se você amplia demais o escopo também acaba ficando inviável, por isso se concentrou na região da cana.
A patrimonialização tem algum efeito na profissionalização de grupos? Como isso afeta os sambadores nesse sentido?
Conversando com pesquisadores e sambadores de outras cidades, eu vi que é um processo que ocorreu no Recôncavo como um todo. Mas é interessante que esse é um processo que não é criado pela política de patrimônio, pelo menos essa é minha opinião, mas ele é potencializado pela patrimonialização. Em Cachoeira e em Santo Amaro já se vê esse processo ocorrendo nos anos 1970 e 1980 com bastante força, mas a origem talvez esteja nos anos 1950, quando Dona Dalva funda o Samba Suerdieck, dentro da fábrica de charutos Suerdieck, um samba que fazia parte da categoria laboral das charuteiras. Dona Dalva é então responsável, nesse sentido, por uma profissionalização do samba, pois começa a existir um figurino, um grupo que passava a ensaiar com frequência – claro que tudo isso dentro de uma lógica de defender uma categoria laboral e de defender o direito de fazer cultura à sua maneira no ambiente de trabalho, onde ele era discriminado. Na verdade, Dona Dalva, antes de ser uma grande liderança do samba, foi uma grande liderança trabalhista, uma liderança de uma categoria laboral feminina e que criou um grupo de samba formado por mulheres.
Já nos anos 1970 surgem novos ímpetos de profissionalização com uma onda mais ligada ao turismo, fomentada por uma política pública de turismo, como o São João Feira do Porto, em Cachoeira. E há uma questão muito complicada na Bahia com a era carlista, que durou uns 40 anos, uma confusão muito grande nos níveis municipal e estadual, entre as secretarias de Turismo e de Cultura, em que a agenda do turismo acaba pautando a agenda da cultura. Isso é uma herança do carlismo na Bahia, como também ocorre com uma herança do Sarney no Maranhão. Recentemente isso tem mudado na esfera estadual, mas no nível municipal é uma situação que ainda ocorre.
Então há um impulso de transformar o São João, que é uma festa vicinal, em um megaespetáculo, com grandes shows, grandes palcos, e de escolher em cada região uma cara local: em São João do Bonfim é o São João do forró; em Cachoeira, o São João do samba de roda e, posteriormente, do reggae.
Esse é um momento em que há uma onda de migração do Recôncavo para Salvador; esses migrantes, em determinado momento, voltam para morar ou visitar a região do Recôncavo e trazem consigo as influências e as lógicas de palco e paredões de som de um contexto mais urbano – esse também é outro impulso. Quando a política patrimonial chega, nos anos 2000, esse cenário de profissionalização dos grupos já estava razoavelmente estabelecido. Mas acredito que ela seja mais um impulso, sim, tanto que a partir desse momento é possível ver, em distritos rurais e municípios menores, que o calendário do surgimento de grupos aumenta pós-política de patrimônio, então ela ajuda a ramificar isso, mas essa profissionalização já é bem anterior.
O samba de rodase depara com várias questões referentes à cultura negra, como a capoeira e o candomblé. Como você enxerga a maneira com que os sambadores e o samba se relacionam com esse universo?
Existe um autor muito importante que escreveu sobre o samba de roda nos anos 1980, o Tiago de Oliveira Pinto, e ele diz o seguinte: “É na tríade jogo-profano-sagrado/capoeira-samba-candomblé que se dá a identificação cultural do povo do Recôncavo”. Ele escreveu isso 30 anos atrás e ainda vale para boa parte dessa população. Lembro também de ver uma mãe de santo falar que “o axé da capoeira e do candomblé não são o mesmo axé, mas eles andam juntos”, e eu acho que faz sentido extrapolar isso pro samba também, como forças vitais que caminham juntas.
Existe uma conexão muito estreita entre samba, capoeira e candomblé. São universos que se confundem em muitos momentos: é comum ver capoeiristas que sabem fazer samba, sambadores que sabem jogar capoeira. Boa parte do povo do samba é de santo, e quem não é de santo tem certa intimidade com o universo do candomblé – inclusive grupos de samba de roda que têm uma raiz majoritariamente católica, como é o caso da Esmola Cantada, um grupo de Cachoeira, que se relaciona bem com o candomblé e é devoto da Santa Cruz. Quando eles, da Escmola Cantada, fazem a festa da Santa Cruz, e uma semana antes da missa deve haver a lavagem, são as baianas do terreiro de Mãe Railda que fazem essa lavagem. Então não existe nenhum problema no fato de o candomblé cumprir uma função ritual em uma festa católica.
Eu arrisco dizer que no Recôncavo o samba é o fio que costura tudo, porque o samba está presente em todos os lugares. Se termina uma roda de capoeira, tem samba; termina uma missa festiva ou uma reza de santo, tem samba; termina um ritual de candomblé, tem samba; se é festa de caboclo, o samba já faz parte do ritual; se dá caruru para o orixá, tem samba; juntaram-se cinco bêbados em uma mesa de bar, tem samba. O samba está em todos os lugares, mas, veja bem, nem sempre o samba está no lugar do profano – o lugar dele é esse lado do profano que tem a permissão para pisar o solo sagrado e fazer exatamente essa costura e conectar esses dois mundos.